sexta-feira, 1 de outubro de 2010



ISSO É UM LIVRO?

«"O Nariz de Gógol", solicitei. A rapariga era uma virago: "Isso é um livro?" O extravagante diálogo decorreu numa tarde de Abril numa livraria que já teve as suas horas, nesta cidade mesmo de Lisboa."Não vinha aqui procurar sapatos."A empregada, furibunda, avançou para o computador, gritando para uma colega: "Já ouviste falar de um livro chamado O Nariz?" A outra aconselhou a busca no computador. Lá fomos, e ainda ouvimos a voz desta segunda, perguntando: "Isso é recente?" "Sim, saiu uma edição há uns dois anos."
Velho livrariófilo (não é bibliófilo, é viciado em livrarias e estantes), desconfio destas livrarias onde os vendedores se precipitam para as máquinas à procura de stocks, não sabem o que está nas estantes, nem a cor do livro, nem me aconselham outra edição, ou mesmo outra obra ou outra ainda. Embora já o tenha, teria comprado as Almas Mortas tivesse a rapariga dito um "este saiu há menos tempo e é uma tradução do russo". E teria comprado Kafka, se me tivesse dito "são parecidos"; e então se tivesse apontado o que de Gógol há em Rodrigues Miguéis, cá trazia eu para casa mais uma Gente da Terceira Classe.
Depois da lenta consulta — e eu a querer fumar —, lá disse a assertiva jovem (também há jovens imbecis): "Isso não existe." A outra, mais simpática, trouxe-me até à porta e sussurrou: "Vá àquela ali, é melhor, nós não percebemos nada disto. "Lamentei, cá para mim, as misérias da vida que obrigam uma moça alegremente ignorante a trabalhar numa livraria e não numa lojinha de bugigangas, segui o conselho.
Pois não é que a empregada desta outra livraria, a "melhor", empregada mais antiga que fazia crochet, interrompe o passatempo e me olha, aterradora: "Isso é um livro?" pergunta. "É. E saiu há uns dois anos." "Ó Não-sei-Quantas chega aqui, conheces uma editora que se chama O Nariz?" grita para o fundo. "Não é uma editora, é uma novela, a edição é da Assírio & Alvim." "Dessa, temos umas coisas" disse, pousando o crochet e deixando-me com ténue esperança. "Não sei bem o quê, mas temos." E lá atacou o amaldiçoado computador. "Olhe, temos o Fernando Pessoa, esse temos, não quer?"
"Não, queria o Gógol" repeti, e já passara meia hora desde que me dera aquele desejo maldito de comprar uma das mais belas novelas desde sempre e jamais. "Isso é um livro?" repetiu a livreira, e foi a terceira vez que, numa livraria, me fizeram esta pergunta. Lá disse que supunha que, nas livrarias, se vendem livros (embora, para dizer a verdade, durante esta já quase hora, não tenha eu visto nem um cliente nem uma venda).
Talvez pudesse ter ido a uma "grande superfície", aí não me perguntam "Isso é um livro?", vêm o código de barras e fazem plim, mas não fui, meti-me num supermercado a comprar iogurtes, voltei para casa, tristonho, sem o meu cobiçado Nariz (salvo seja). (…) »

Público, Mil Folhas, 5 de Outubro de 2002

Jorge Silva Melo, in "Século Passado" cotovia, 2007


Nenhum entretenimento é tão barato como a leitura, nem nenhum prazer tão duradouro.

Lady Montagu Wortley

Booktrailer: Marina de Carlos Ruiz Zafón




«Por qualquer estranha razão, sentimo-nos mais próximos de algumas das nossas criaturas sem sabermos explicar muito bem o porquê. De entre todos os livros que publiquei desde que comecei neste estranho ofício de romancista, lá por 1992, Marina é um dos meus favoritos.» «À medida que avançava na escrita, tudo naquela história começou a ter sabor a despedida e, quando a terminei, tive a impressão de que qualquer coisa dentro de mim, qualquer coisa que ainda hoje não sei muito bem o que era, mas de que sinto falta dia a dia, ficou ali para sempre.» Carlos Ruiz Zafón «Marina disse-me uma vez que apenas recordamos o que nunca aconteceu. Passaria uma eternidade antes que compreendesse aquelas palavras. Mas mais vale começar pelo princípio, que neste caso é o fim.» «Em Maio de 1980 desapareci do mundo durante uma semana. No espaço de sete dias e sete noites, ninguém soube do meu paradeiro.» «Não sabia então que oceano do tempo mais tarde ou mais cedo nos devolve as recordações que nele enterramos. Quinze anos mais tarde, a memória daquele dia voltou até mim. Vi aquele rapaz a vaguear por entre as brumas da estação de Francia e o nome de Marina tornou-se de novo incandescente como uma ferida fresca. «Todos temos um segredo fechado à chave nas águas-furtadas da alma. Este é o meu.»

edição: Planeta

título: Marina

autor: Carlos Ruiz Zafón

tradução: Maria do Carmo Abreu