sábado, 11 de dezembro de 2010


La dame à la licorne
Dona Semifofa erguendo o dedo
mindinho arqueado em asa sobre a asa da
chávena (ou xícara) disse: -
- Eu sempre soube que poetas não
são gente em quem confie uma senhora -
e num sorvinho delicado rematou
a mágoa de cinquenta primaveras.
O licorne, num doce balançar do chifre esguio,
gravemente assentiu,
um pouco perturbado
pela insistência obnóxia e recatada
com que a discreta dama confundia,
ou mais que a dama os olhos vagos dela,
o chifre legendário e o metafórico
que de entre as pernas longo lhe descia
ou já de perturbado não pendia.

Torcendo as ancas disfarçadamente
para encobrir das vistas semifofas
essa homenagem à inocência delas
(como o cavalheiro que pousando a mão
assim se esconde em pudicícia o quanto
não esconda muito mais que a discrição obriga),
D. Gil cofiou a capriforme pêra
e de soslaio viu que Dona Semifofa
do branco em ferro assento resvalava
para a verdura em que as florinhas eram
de cores variegadas, salpicantes.
D. Gil era o licorne, e disse com voz cava:
- Mas eu também, minha senhora, nunca
acreditei que de confiança eles fossem.
Se acreditasse, como não teria
a mágoa imensa de não ser centauro? -

No chão, erguendo as pernas, Semifofa uivou:
- Centauro, para quê? Não há centauros.
Licornes, sim, D. Gil, vinde a meus braços.

JORGE DE SENA

Mulheres
Elas sorriem quando querem gritar.
Elas cantam quando querem chorar.
Elas choram quando estão felizes.
E riem quando estão nervosas.

Elas brigam por aquilo que acreditam.
Elas levantam-se para injustiça.
Elas não levam "não" como resposta quando
acreditam que existe melhor solução.

Elas andam sem novos sapatos para
suas crianças poder tê-los.
Elas vão ao medico com uma amiga assustada.
Elas amam incondicionalmente.

Elas choram quando suas crianças adoecem
e se alegram quando suas crianças ganham prémios.
Elas ficam contentes quando ouvem sobre
um aniversario ou um novo casamento.

Pablo Neruda

Faltam-me as cartas!
Já ninguém as escreve, já ninguém as descobre em caixas perdidas no sotão, atadas com laços em envelopes amarelecidos.
As cartas lembram-me as que escrevi dos sítios por onde passava e as cartas que recebia dos sítios por onde os outros passavam. E o papel, criteriosamente escolhido, sem dobras, vincos ou manchas, apenas a marca de água em forma de coroa.E a ida aos correios, o selo colorido com uma história para contar ou uma data a recordar.E o pote que vertia descontroladamente a cola que lutava com um pincel sem barba.E depois soltavamo-la no marco do correio e esperavamos semanas pela resposta.
As cartas lembram-me silêncios repetidos, em que a caneta percorria o papel, sem medos ou restrições, como um prolongamento perfeito do que vai no coração.
É bom receber cartas a sério, em envelope bonito, dobrada em três partes iguais, sem vincos a mais.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010


Sombras
Todos os laivos da luz que o dia cospe,
Se esvaem nas fendas das minhas mãos
E escorrem como água em cascata louca e urgente.

Interlúvio
E a melancolia surge uma vez e outra,
E a calma não é mais que o grito frio do calor imenso da minha interioridade.
Pego na memória e ela corre,
Temo que o tempo apague todas as imagens que trago guardadas,
Temo o ruído que fazem e que suja o silêncio fecundo das nossas vozes.


O Piano sílaba por sílaba

O Piano sílaba por sílaba
Viaja através do silêncio
Transpõe um por um
Os múltiplos murais do silêncio
Entre luz e penumbra joga
E de terra em terra persegue
A nostalgia até ao seu último reduto.


O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.