terça-feira, 15 de novembro de 2011


Handmade oil painting reproduction of Le Poème de l'âme - Solitude, a painting by Anne-Francois-Louis Janmot.

"Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos — porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou — não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir — apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os “isolados” que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive — não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente — ó ideal dos amorosos! — eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam."

(Extraído de “Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa”. Mário de Sá-Carneiro, 1890-1916. In: Poesia.

domingo, 13 de novembro de 2011

The Monopolist (or three boys seated on a stoop), John George Brown (British-born American Realist Painter, 1831-1913), oil on canvas, 24” x 36”, Private Collection

  "Egoísmo não é viver como nós desejamos, é exigir aos outros que vivam como nós desejamos. E o altruísmo é permitir aos outros viverem como lhes aprouver, sem se imiscuir nas suas escolhas. O egoísmo visa constantemente criar à sua volta uma uniformidade total. O altruísmo considera que uma diversidade infinita é uma maravilha: aceita-a, aprova-a e nela se compraz. Não é egoísta aquele que pensa por si. Quem não pensa por si, não pensa, pura e simplesmente. É grosseiramente egoísta exigir que o vosso próximo pense como vós e partilhe as vossas opiniões. Por que o faria? Se é capaz de pensar, pensa de modo diferente. Se não é capaz, seria monstruoso exigir-lhe o mínimo pensamento que fosse."

in  A Alma Humana, Oscar Wilde

quinta-feira, 3 de novembro de 2011





Knulp acrescentou ainda:

- Cada pessoa tem a sua alma, que não pode ser confundida com nenhuma outra. Duas pessoas podem encontrar-se, podem conversar e ser bastante próximas, mas as suas almas são como flores, cada uma com raízes em lugares diferentes, e nenhuma delas pode ir ao encontro da outra, caso contrário teria de abandonar as suas raízes e isso é algo que não conseguem fazer. As flores emitem e trocam o seu aroma e as suas sementes, pois gostariam de ir ao encontro uma da outra, mas para que uma semente chegue ao lugar que lhe é destinado nada a flor pode fazer; responsável por isso é o vento, e esse chega e parte, vai e vem como e para onde ele quiser.

Dali a alguns momentos retomou:

- O sonho de que te falei deve ter o mesmo significado.
Não foi com consciência que fiz fosse que mal fosse à Henriette ou sequer à Lisabeth, mas pelo simples facto de ter em tempos gostado de uma e de outra e de elas espiritualmente me terem apoderado, tornaram-se para mim uma espécie de figura de sonho, parecida com ambas mas igual a nenhuma delas. Essa figura pertence-me apenas a mim e já nem sequer é algo vivo. Do mesmo modo pensei eu frequentemente acerca dos meus pais. Estes acham que, sendo eu seu filho, sou igual a eles. Porém, por muito amor que lhes tenha, não deixo de ser para eles um estranho, alguém que não conseguem compreender. Aquilo que em mim e para mim é mais importante, e que talvez defina o que é a minha alma, é algo que eles consideram secundário e justificam-no com a minha juventude ou como sendo uma mera questão de temperamento. No entanto gostam de mim e de bom grado fariam por mim tudo o que fosse preciso. Um pai pode legar ao seu filho o nariz e os olhos, até mesmo a inteligência, mas jamais a alma. Essa é sempre nova em cada indivíduo.

in Knulp, Hermann Hesse

terça-feira, 11 de outubro de 2011




Os laços entre uma pessoa e nós só existem no nosso pensamento. Ao perder a força, a memória afrouxa-os, e apesar da ilusão com que gostaríamos de nos enganar e com a qual, por amor, por amizade, por cortesia, por respeito humano, por dever, enganamos os outros, existimos sós. O homem é o ser que não pode sair de si, que só conhece os outros em si, e quando diz o contrário mente.

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (VI - A Fugitiva)

sexta-feira, 15 de julho de 2011




ESPELHADOR

Já os olhos me escondem o que realmente vêem
E, sem desesperar, inspiro as cores da calma que o ar transporta.
No espaço côncavo das palpitações de Inverno
Resta apenas o calor dos momentos frágeis e efémeros.
Já os olhos me escondem o que realmente vêem
E a alma teima em fazê-lo brilhar.
Teremos já macias cãs e relevos sulcados nas frenéticas mãos,
Quando o quadro pintado se revela aos olhares incrédulos dos espectadores,
E dele surgirá a angustiante mensagem que, fechada e bem guardada,
Resistiu, trôpega e calada às tentações de tantos momentos
Em que a voz calou o que a alma sentiu.
Teremos então os desenhos bem delineados de tudo aquilo que perdemos,
Faltar-nos-á o tempo para agarrar e modelar de novo a vida que só surge uma vez.
As lágrimas implorarão sentido, serão insípidas,
Restará apenas o murmúrio escorregadio do seu deslizar.
Olho o seu balançar dorido e revejo-me no reflexo cristalino de cada gota salgada.
A imagem que observo é a de alguém que, nostalgicamente, se aproxima do reflexo de si!

F.SCHUBERT SCHUBERT

terça-feira, 28 de junho de 2011



"De pé, imóvel, Michelis sentia a vida em seu redor, inexoravelmente, sempre recomeçada. A roda das estações avançava; neste momento eram as vindimas; depois seria a vez das azeitonas, depois o nascimento de Cristo ... E depois as amendoeiras floresciam, os trigais cresciam de novo, o tempo das ceifas voltaria ... Michelis estava como que preso a uma roda; subia e descia, agora com o sol, logo sob a chuva. O dia e a noite estavam amarrados à mesma roda; subiam e desciam também ao mesmo tempo que ele. E Cristo, o recém-nascido, crescia, tornava-se um homem, ia valentemente semear a palavra de Deus, era crucificado, ressuscitava, tornava a descer do Céu, e no ano seguinte era recrucificado ...
A cabeça de Michelis girava como um pião; teve uma vertigem.
Segurou-se a um rochedo, como para deter a roda, para a impedir de rolar... Caiu por terra, e subitamente, sem saber porquê, desfez-se em lágrimas."

Nikos Kazantzaki, Cristo Recrucificado


"Ethel tinha a impressão de pairar no céu. Era das nuvens que ela gostava. Deitada na areia das dunas, via-as desfilar a alta velocidade, leves, livres. Sonhava com o espaço que tinham percorrido, a extensão dos oceanos, o campo das vagas, antes de chegar até ela. Deslizavam, não muito alto, pequenos flocos brancos que por vezes se entrechocavam, se uniam, se dividiam. Algumas pareciam loucas, corriam mais depressa do que as outras, transformavam-se em novelos de algodão, em sementes de dentes-de-leão, em plumas de canas. A terra agitava-se debaixo delas num movimento lento que provocava vertigens. As vagas iam morrer na praia produzindo o barulho de um motor em marcha, empurrando a planura do mar, derrubando o mundo irresistivelmente. Depois chegou uma grande nuvem cinzenta e branca que se interpôs entre ela e o sol, e Ethel via uma baleia, cabeça enorme e cauda muito pequena lá ao fundo do corpo. A areia da duna rodeava Ethel, limitava-a, comprimia-a suavemente. As rajadas de vento fustigavam-lhe o rosto, as pernas, os braços aplicando-lhe milhões de pequenas picadas. Tinha a impressão de nunca ter saído daquele lugar, daquele sítio no cimo da duna, na areia branca e seca que o mar nunca alcança, onde começam a crescer as plantas espinhosas, os cardos, onde são enterradas as sementes vermelhas de tamariz."

J.M.G. Le Clézio, A Música da Fome

sábado, 25 de junho de 2011


ABRAÇOS

Acredita!A força de um abraço real,
dá-nos a sensação clara da falta de espaço entre duas almas que se amam.

sexta-feira, 24 de junho de 2011


Valsa em Sol menor

Como andorinha sonolenta que voa e descobre o tempo no seu lugar,
Chego até aqui e observo a sombra do teu sorriso
Que se esbate na estrada do poente.
Vôos certeiros de circulos mal fechados
Para que o princípio nunca se cruze com o fim.
O sol presencia o bailado em plano inclinado
E deixa que o palco pareça real.
O vento pergunta, sem grandes demoras, se a valsa é perfeita
Ou se preferem um tango em sol menor.
As aves, em sincronia, respondem em bando,
Que a valsa é a três, um par não se forma,
Preferem o tango, a dois é melhor.
Compasso a compasso, sem repetições,
Seguem a linha esquecida desenhada pelo sol.

Schubert Schubert

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011



Nos indivíduos, a loucura é algo raro - mas nos grupos, nos partidos, nos povos, nas épocas, é regra.

Friedrich Nietzsche



A loucura é uma força da natureza para o bem ou para o mal, ao passo que a estupidez é uma debilidade da natureza sem contrapartidas.

Italo Calvino

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011



Quando a tristeza nos beija, há gelo nas palavras que receamos pronunciar. Guardamo-las embrulhadas em silêncio e loucura.

Schubert Schubert


sexta-feira, 28 de janeiro de 2011



«E um dia, para seu assombramento, viu-os passar outra vez. A eles, aos porcos-alados. Em bando. Cruzando os céus à mesma hora e na mesma direcção das outras vezes. O Juiz regulou o binóculo até ao olho-limite, até à verdade impossível. E confirmou. Certo, os porcos do sol poente.
Com a alegria do investigador que acaba de comprovar a sua descoberta, correu à procura do Cirurgião Sequera. (…) o magistrado conduziu o médico à varanda do salão de música e ali, a sós, comunicou-lhe o acontecimento apenas no essencial, o resto ficaria para depois.
Este, na sua qualidade profissional, teve a natural hesitação do prático científico perante o fenómeno inesperado: não só pôs respeitosas reticências no tocante aos estranhos vultos alados como admitiu que a refracção das nuvens sangrentas do ocaso fosse a causa de tão intrigantes imagens. Consequentemente, punha à meritíssima consideração do Juiz a probabilidade, naturalíssima aliás, de ter sido vítima de qualquer miragem frente à solidão do oceano e à luz agonizante da tarde."

José Cardoso Pires, " A República dos Corvos"

terça-feira, 25 de janeiro de 2011



O Homem e o Mar


Homem livre, o oceano é um espelho fulgente
Que tu sempre hás-de amar. No seu dorso agitado,
Como em puro cristal, contemplas, retratado,
Teu íntimo sentir, teu coração ardente.

Gostas de te banhar na tua própria imagem.
Dás-lhe beijo até, e, às vezes, teus gemidos
Nem sentes, ao escutar os gritos doloridos,
As queixas que ele diz em mística linguagem.

Vós sois, ambos os dois, discretos tenebrosos;
Homem, ninguém sondou teus negros paroxismos,
Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos;
Os segredos guardais, avaros, receosos!

E há séculos mil, séculos inumeráveis,
Que os dois vos combateis n'uma luta selvagem,
De tal modo gostais n'uma luta selvagem,
Eternos lutadores ó irmãos implacáveis!

Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011


Pieter Brueghel, the Elder


"De pé, imóvel, Michelis sentia a vida em seu redor, inexoravelmente, sempre recomeçada. A roda das estações avançava; neste momento eram as vindimas; depois seria a vez das azeitonas, depois o nascimento de Cristo ... E depois as amendoeiras floresciam, os trigais cresciam de novo, o tempo das ceifas voltaria ... Michelis estava como que preso a uma roda; subia e descia, agora com o sol, logo sob a chuva. O dia e a noite estavam amarrados à mesma roda; subiam e desciam também ao mesmo tempo que ele. E Cristo, o recém-nascido, crescia, tornava-se um homem, ia valentemente semear a palavra de Deus, era crucificado, ressuscitava, tornava a descer do Céu, e no ano seguinte era recrucificado ...
A cabeça de Michelis girava como um pião; teve uma vertigem.
Segurou-se a um rochedo, como para deter a roda, para a impedir de rolar... Caiu por terra, e subitamente, sem saber porquê, desfez-se em lágrimas."

Nikos Kazantzaki, Cristo Recrucificado

"O sol ergueu-se mais. Ondas azuis, ondas verdes, abrem um rápido leque sobre a praia, rodeando as pontas dos cardos marinhos e deixando aqui e ali finas poças de luz. Atrás de si, as ondas largam uma pálida orla negra. As rochas, ainda há pouco enevoadas e macias, endureceram e mostram as suas fendas vermelhas.
Agudas sombras jazem sobre a relva; o orvalho, dançando na ponta das folhas e das flores, transforma o jardim num mosaico de cintilações dispersas, que não chegam a fundir-se numa só mancha luminosa. Os pássaros, com o peito salpicado de amarelo e rosa, cantavam juntos uma ou duas melodias, desenfreados como um par de patinadores enlaçados. Depois, subitamente, ficavam em silêncio e partiam.
Sobre a casa, o sol lançava agora raios mais largos. A luz aflorava qualquer coisa verde no canto da janela, qualquer coisa que se transformava numa esmeralda, numa gruta de puro verde, um fruto sem sementes. Depois, tornava mais agudos os contornos das cadeiras e das mesas e iluminava a renda branca das toalhas entretecidas de fios doirados. À medida que a luz aumentava, abria-se aqui e ali um botão, soltando flores cheias de pequenas veias verdes ainda palpitantes, como se o esforço do desabrochar as tivesse transtornado. Ao baterem nas paredes brancas as suas frágeis corolas faziam um vago carrilhão. Tudo se fundia e perdia docemente a sua forma. Dir-se-ia que o prato de porcelana se diluía e a faca de aço se tornava líquida. E durante todo esse tempo, as ondas desfaziam-se nos rochedos, numa vibração surda, como troncos de árvores tombando na areia."
Virginia Woolf, As Ondas

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011



COMPANHEIROS

quero
escrever-me de homens
quero
calçar-me de terra
quero ser
a estrada marinha
que prossegue depois do último caminho

e quando ficar sem mim
não terei escrito
senão por vós
irmãos de um sonho
por vós
que não sereis derrotados

deixo
a paciência dos rios
a idade dos livros

mas não lego
mapa nem bússola
porque andei sempre
sobre meus pés
e doeu-me
às vezes
viver
hei-de inventar
um verso que vos faça justiça

por ora
basta-me o arco-íris

em que vos sonho
basta-te saber que morreis demasiado
por viverdes de menos
mas que permaneceis sem preço
companheiros

Mia Couto

"Quando já não havia outra tinta no mundo o poeta usou do seu próprio sangue.
Não dispondo de papel, ele escreveu no próprio corpo.
Assim, nasceu a voz, o rio em si mesmo ancorado.
Como o sangue: sem voz nem nascente."

Mia Couto