sexta-feira, 28 de janeiro de 2011



«E um dia, para seu assombramento, viu-os passar outra vez. A eles, aos porcos-alados. Em bando. Cruzando os céus à mesma hora e na mesma direcção das outras vezes. O Juiz regulou o binóculo até ao olho-limite, até à verdade impossível. E confirmou. Certo, os porcos do sol poente.
Com a alegria do investigador que acaba de comprovar a sua descoberta, correu à procura do Cirurgião Sequera. (…) o magistrado conduziu o médico à varanda do salão de música e ali, a sós, comunicou-lhe o acontecimento apenas no essencial, o resto ficaria para depois.
Este, na sua qualidade profissional, teve a natural hesitação do prático científico perante o fenómeno inesperado: não só pôs respeitosas reticências no tocante aos estranhos vultos alados como admitiu que a refracção das nuvens sangrentas do ocaso fosse a causa de tão intrigantes imagens. Consequentemente, punha à meritíssima consideração do Juiz a probabilidade, naturalíssima aliás, de ter sido vítima de qualquer miragem frente à solidão do oceano e à luz agonizante da tarde."

José Cardoso Pires, " A República dos Corvos"

terça-feira, 25 de janeiro de 2011



O Homem e o Mar


Homem livre, o oceano é um espelho fulgente
Que tu sempre hás-de amar. No seu dorso agitado,
Como em puro cristal, contemplas, retratado,
Teu íntimo sentir, teu coração ardente.

Gostas de te banhar na tua própria imagem.
Dás-lhe beijo até, e, às vezes, teus gemidos
Nem sentes, ao escutar os gritos doloridos,
As queixas que ele diz em mística linguagem.

Vós sois, ambos os dois, discretos tenebrosos;
Homem, ninguém sondou teus negros paroxismos,
Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos;
Os segredos guardais, avaros, receosos!

E há séculos mil, séculos inumeráveis,
Que os dois vos combateis n'uma luta selvagem,
De tal modo gostais n'uma luta selvagem,
Eternos lutadores ó irmãos implacáveis!

Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011


Pieter Brueghel, the Elder


"De pé, imóvel, Michelis sentia a vida em seu redor, inexoravelmente, sempre recomeçada. A roda das estações avançava; neste momento eram as vindimas; depois seria a vez das azeitonas, depois o nascimento de Cristo ... E depois as amendoeiras floresciam, os trigais cresciam de novo, o tempo das ceifas voltaria ... Michelis estava como que preso a uma roda; subia e descia, agora com o sol, logo sob a chuva. O dia e a noite estavam amarrados à mesma roda; subiam e desciam também ao mesmo tempo que ele. E Cristo, o recém-nascido, crescia, tornava-se um homem, ia valentemente semear a palavra de Deus, era crucificado, ressuscitava, tornava a descer do Céu, e no ano seguinte era recrucificado ...
A cabeça de Michelis girava como um pião; teve uma vertigem.
Segurou-se a um rochedo, como para deter a roda, para a impedir de rolar... Caiu por terra, e subitamente, sem saber porquê, desfez-se em lágrimas."

Nikos Kazantzaki, Cristo Recrucificado

"O sol ergueu-se mais. Ondas azuis, ondas verdes, abrem um rápido leque sobre a praia, rodeando as pontas dos cardos marinhos e deixando aqui e ali finas poças de luz. Atrás de si, as ondas largam uma pálida orla negra. As rochas, ainda há pouco enevoadas e macias, endureceram e mostram as suas fendas vermelhas.
Agudas sombras jazem sobre a relva; o orvalho, dançando na ponta das folhas e das flores, transforma o jardim num mosaico de cintilações dispersas, que não chegam a fundir-se numa só mancha luminosa. Os pássaros, com o peito salpicado de amarelo e rosa, cantavam juntos uma ou duas melodias, desenfreados como um par de patinadores enlaçados. Depois, subitamente, ficavam em silêncio e partiam.
Sobre a casa, o sol lançava agora raios mais largos. A luz aflorava qualquer coisa verde no canto da janela, qualquer coisa que se transformava numa esmeralda, numa gruta de puro verde, um fruto sem sementes. Depois, tornava mais agudos os contornos das cadeiras e das mesas e iluminava a renda branca das toalhas entretecidas de fios doirados. À medida que a luz aumentava, abria-se aqui e ali um botão, soltando flores cheias de pequenas veias verdes ainda palpitantes, como se o esforço do desabrochar as tivesse transtornado. Ao baterem nas paredes brancas as suas frágeis corolas faziam um vago carrilhão. Tudo se fundia e perdia docemente a sua forma. Dir-se-ia que o prato de porcelana se diluía e a faca de aço se tornava líquida. E durante todo esse tempo, as ondas desfaziam-se nos rochedos, numa vibração surda, como troncos de árvores tombando na areia."
Virginia Woolf, As Ondas

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011



COMPANHEIROS

quero
escrever-me de homens
quero
calçar-me de terra
quero ser
a estrada marinha
que prossegue depois do último caminho

e quando ficar sem mim
não terei escrito
senão por vós
irmãos de um sonho
por vós
que não sereis derrotados

deixo
a paciência dos rios
a idade dos livros

mas não lego
mapa nem bússola
porque andei sempre
sobre meus pés
e doeu-me
às vezes
viver
hei-de inventar
um verso que vos faça justiça

por ora
basta-me o arco-íris

em que vos sonho
basta-te saber que morreis demasiado
por viverdes de menos
mas que permaneceis sem preço
companheiros

Mia Couto

"Quando já não havia outra tinta no mundo o poeta usou do seu próprio sangue.
Não dispondo de papel, ele escreveu no próprio corpo.
Assim, nasceu a voz, o rio em si mesmo ancorado.
Como o sangue: sem voz nem nascente."

Mia Couto